25 março 2006

Sobre a Língua Portuguesa...ou os pontapés do costume!

[excertos de um artigo publicado por Francisco Belard no caderno "Actual" do semanário "Expresso", de 18 se Março de 2006]

Um livro recente procede à recolha e correcção de erros (pelo menos no entender do autor) verificados em Portugal na escrita e na fala. Refiro-me a Gente Famosa Continua a Dar Pontapés na Gramática - Manual de Erros e Correcções de Linguagem, de Lauro Portugal (Roma Editora, 2006, 222 págs.). ...)
Os maus exemplos que Lauro Portugal regista farão sorrir muitos dos que tiveram aproveitamento no velho ensino primário (4.ª classe). Alguns não têm que ver com ortografia nem com sintaxe; são frases irreflectidas, como a do futebolista que diz «Nós somos humanos como as pessoas». Outros, porém, são erros dificilmente perdoáveis a profissionais da escrita (e/ou da fala em meios de comunicação com padrões mínimos de qualidade), como os jornalistas que dizem «Está a arder uma vasta área de pinhal de eucaliptos», ou «As chamas estavam a arder».
Parte dos erros diz respeito a palavras mal escritas, como «atraiem» e «caiem» em vez de «atraem» e «caem», ou «descriminação» em vez de «discriminação». São «erros grassos» (gralha de um diário do dia 6-3). (...)
Quanto aos dicionaristas, melhores ou piores, irão registando as inovações mais frequentes e, no limite, eliminando as formas antes «correctas» mas caídas em desuso para substituí-las por outras que hoje julgamos erradas. A atitude descritiva e fenomenológica prevalece sobre a intenção normativa. Como «o povo faz a língua», a moral da história é a vitória dos menos alfabetizados, desde que se imponham no campo dos 'media'. Os demais tendem a encolher os ombros. Dir-se-á que os cientistas têm outras tarefas, mas a passividade é inaceitável nos pedagogos e sobretudo nos responsáveis governamentais e escolares.
No ensino (principalmente no básico e no secundário)não pode valer tudo, o que o tornaria impossível ou inútil. Se, em ciências como a Geografia, não aceitamos a ideia de que a China tem fronteiras com o México, e em História, ciência «não exacta», recusamosa data de 1842 para a Revolução Francesa (tal como em Aritmética negamos que 3 vezes 9 sejam 28), como é que em Português, ou em Língua Portuguesa, aceitamos tamanha flutuação e tanta imprecisão? (...)
O ensino básico será momento para escrita tão «criativa»? Violar regras de gramática pode ser muito interessante, mas depois de aprendê-las. (...) Toda a conversa oficial e oficiosa sobre «requalificação» do ensino em Portugal será apenas conversa, menosprezando a aprendizagem da língua e da literatura? As deficiências da escolaridade repercutem-se e ampliam-se nos meios de comunicação, nas traduções de livros, nas legendas de filmes.
Quanto ao que lemos nos jornais e nos livros, a discussão está há muito descentrada e desfocada. Muitas normas (porque elas continuam a existir, mesmo «sob forma tentada», como diria um jurista) ocupam-se de coisas ridículas, como proibir que se escreva «stress», determinar que «rei» e «reino» se grafem com minúsculas e «Presidente da República» com maiúsculas», decidir que «Bagdad» tem de ser «Bagdade» (e amanhã,se calhar, «Baguedade»), etc. Parte do esforço dos prontuários para revisores e dos «livros de estilo» para jornalistas consome-se em ninharias, por vezes sem sustentação científica de base. (...) Porquê «há 37 anos atrás»? Não basta «há 37 anos»? Ou, na edição anterior, porquê «imundície» na pág. 5 e «imundice» na pág. 7? Se acham que tanto faz, contribuem para a desorientação dos leitores (incluindo professores e estudantes). (...)
A proliferação do disparate e da incongruência revela os perigos de tomar os textos dos media, em vez dos melhores textos de escritores, como exemplos para uso escolar de quem aprende português.